Outro dia assisti ao programa do Bill Maher, na HBO americana, quando entrevistou um experiente correspondente de guerra. Entre outras, Bill fez a seguinte interessante pergunta: Porque uma minoria de pessoas – soldados, jornalistas, voluntários – literalmente torna-se “viciada em guerra”, ou seja, faz de tudo para voltar às áreas de conflito e não consegue viver novamente uma vida convencional?
Meu impulso foi logo associar a figura de um viciado em guerra à de um facínora, sanguinário, uma espécie de Rambo ávido pela adrenalina de matar, ou algo parecido. A resposta, no entanto, foi muito mais surpreendente e profunda.
Primeiro, o jornalista explicou que, durante situações de vida ou morte como as encontradas em batalhas, os seres humanos experimentam sentimentos únicos e embriagantes. Quando você depende do próximo para sobreviver, como um companheiro de batalhão, passa também a estar disposto a arriscar sua vida pelos demais. Desenvolve imensa compaixão pelas pessoas com quem compartilha tal experiência. Trata-se de um instinto coletivo de sobrevivência (afinal, somos um “animal social”) que cria um vínculo intenso, incomparável aos que experimentamos nas situações de relativo conforto nas quais vivemos. É um sentimento de conexão tão forte que não pode sequer ser replicado entre amigos íntimos ou mesmo familiares.
Outro aspecto é a nova perspectiva e importância que são dadas à vida e seus detalhes. No ambiente de guerra, se você come mais do que precisa hoje, pode faltar amanhã; se você faz um ruído descuidado, pode alertar o inimigo; em um dia mais calmo, se não aproveitar para dormir, pode ser que não haja outra oportunidade naquela semana. Todo gesto tem seu significado e preço. Isso faz com que a pessoa dê atenção aos pormenores da vida e passe a valorizar cada momento e escolha. Embora essas situações sejam extremamente desconfortáveis, perigosas e normalmente algo a se evitar, os “viciados” entram num estado de euforia e intensidade – mistura de medo, amor, companheirismo, dependência, apreciação – que torna qualquer outra experiência monótona.
Como exemplo, o entrevistado citou sua ida ao supermercado, após voltar aos EUA de uma das guerras que cobrira. Olhando ao seu redor, viu as prateleiras com dezenas de opções para cada item; o chão limpo cheirando a detergente; as pessoas com aspecto entediado e indiferente na fila do caixa. Foi tomado de uma forte melancolia: como vivemos sem ardor, sem valorizar o que temos, sem desenvolver laços verdadeiros com os demais! Após viver experiências tão intensas, até mesmo as questões que normalmente consideramos importantes em nossas vidas – uma conquista profissional, um divórcio, uma questão financeira – em perspectiva tornam-se caprichos.
A intensidade da guerra cutuca de diferentes maneiras o homem-bicho adormecido dentro de nós. Uma vez acordado, ele dificilmente volta a ser domado. A consequência varia entre trauma, horror, depressão e, aprendi agora, dependência.
[Sugestão: quem tiver a oportunidade, veja o documentário Which Way Is The Front Line From Here, sobre a vida do foto-jornalista Tim Hetherington, que inspirou este post.]
Leia também Resposta a um amigo religioso. Foto: fonte desconhecida (Google imagens)
Viva a guerra! Viva Nietzsche!
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Caro José,
Que bom que gostou e volte sempre ao blog “O Meio e o Si”. Convido-o também a ler o livro, do mesmo nome.
Grande abraço,
AA
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muito bom, e obrigado pela visita ao meu blog. adorei o seu tbm
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Obrigado Pedro! Abs.
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Sem dúvida o ser humano ainda está em seu estágio “animal”. Aguardemos que cresça.
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Caro Lupércio,
Acredito que o conflito seja eterno.
Abraços
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É triste que tenhamos que passar por situações tão extremas para aprender a valorizar nossas próprias vidas. Desenvolver empatia por outras pessoas já está se tornando uma virtude dado a rara frequência com que o comportamento é manifesto.
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Você tem toda a razão. E é interessante também como a empatia, quando experimentada com tanta intensidade, pode ser embriagante.
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