O Meio e o Si

Seu blog de variedades, do trivial ao existencial.

Resposta a um amigo religioso

pensando s

Recebi email de um amigo religioso, recém convertido (a religião não importa) com textos abordando questões sobre a vida e a morte. Após ler e refletir sobre eles, preparei uma resposta que, a meu ver, fundamentalmente se aplica a qualquer religião. Com a devida permissão, compartilho minha réplica na forma deste post. 

 ***

Querido,

Obrigado por enviar os textos, esse tipo de assunto sempre me interessa. Mas você me conhece e sabe que é difícil eu não responder a uma mensagem quando o tema é religião. Tudo que falarei aqui obviamente é com verdadeiro respeito e em prol de uma conversa franca.

Algumas das estórias e teorias que você enviou são realmente bonitas. No entanto, em termos de “aceitá-las”, não vejo como as diferenciar das centenas de estórias oferecidas por outras religiões ou mesmo folclore. Por que acreditar em afirmações que não são fundamentadas em qualquer tipo de evidência? Apenas porque nos confortam e são bonitas? Entendo que você disse que passou a frequentar essas cerimônias religiosas por influência de um amigo e que se emocionou e identificou com tudo o que viu. E eu concordo: cerimônias assim (ou qualquer tipo de aglomeração acompanhada de cantoria, boa retórica e emoções a flor da pele) podem ser emocionantes e envolventes. Mas, até por isso, será que você não teria sentido o mesmo se seu amigo o tivesse levado a uma mesquita, sinagoga, ou mesmo uma cerimônia tribal? E você estaria agora seguindo uma religião totalmente diferente?

Os valores expostos nos textos como um todo são positivos: compaixão, amor ao próximo, harmonia com a natureza, sentido de unidade. Mas será que precisamos de tanta alegoria para assimilarmos esses valores? Não podemos, simplesmente apoiados em princípios éticos e morais, adotar essa postura humanista e naturalista?

Os textos fazem afirmações bastante específicas, por exemplo: “Quem morre no estado de inferno, funde-se com o estado de inferno do universo”; “A vida é eterna, não acaba com a morte”. O que realmente sabemos sobre o que acontece quando morremos? Baseado em que acreditar em reencarnação? As questões da culpa e do conformismo, tão presentes na maioria das religiões, encontram-se aqui também: “Se passamos por sofrimentos é porque temos ‘dívidas’ a pagar. Como todos sabem, se temos dívidas, enquanto não as pagamos totalmente, os cobradores continuarão a nos enviar as contas e a nos perseguir.” E ainda: “Embora muitos relutem em aceitar, é assim que a vida é feita. A vida é resultado das ações que praticamos durante todas as existências.” Por que acreditar em algo tão determinista, sem qualquer tipo de fundamento? Por fé? E seria a fé religiosa algo necessário ou mesmo desejável? Não podemos praticar a compaixão e o respeito ao próximo simplesmente por uma questão moral e de convivência – sem culpa ou carma?

Ironicamente, e de certa forma previsivelmente, após todas as afirmações o texto arrebata: “A visão da eternidade da vida e do carma é muito mais racional e aceitável do que a idéia de que existe um ser superior controlando o destino de cada um na face da Terra e que todos os acontecimentos são de vontade divina”. Mais RACIONAL? Como vê, aqui aparece outra questão inerente à religião, que é a de achar que os OUTROS são irracionais – nunca nós mesmos. Apenas nossa visão é “aceitável”.

Claro que todos temos o direito de acreditar no que queremos e no que nos faz bem. No entanto, para exercer bons valores, ter uma visão positiva da vida, buscar a felicidade, continuo achando intrigante como a maioria das pessoas precisa se apoiar em tanto simbolismo, ou em certos casos mesmo pura fantasia. A vida é um milagre, sim! Mas um “milagre” até boa parte explicável; e não necessariamente precisamos de resposta para tudo. Até onde sabemos e provem o contrário, é isso: nascemos, crescemos, morremos. Existe estímulo maior para sermos felizes, aproveitarmos nossa existência ao máximo e com respeito aos demais e a natureza, e querermos deixar um bom legado para nossos filhos, família e amigos?

Abraços.

***

Veja também Graças a Darwin! e De três em três.

11 comentários em “Resposta a um amigo religioso

  1. Pingback: Religião, ética e moral | O Meio e o Si

  2. Leo di Cappi
    4 de dezembro de 2013
    • O Meio e o Si
      4 de dezembro de 2013

      Obrigado, Flavio! É muito triste…
      Realmente é muito fácil vender um produto invisível. Essa é a verdade.
      Abs

      Curtir

  3. Flávio
    26 de novembro de 2013

    belo texto!

    Ah, Religião… por ela tb se mata!

    Sempre digo que “não tenho religião, mas religiosidade!”

    Se me permitir, repassarei pra minha sogra, antropóloga fodona especializada em Religião e Juventude.. Deve ter coisas algumas entrevistas dela no Youtube: Regina Novaes..

    por falar em youtube, da um confere nos vídeos desse admirável japa, especialwmente esse:

    Curtir

    • O Meio e o Si
      26 de novembro de 2013

      Obrigado, Flavio! Conheci a Regina muito tempo atrás. Claro, compartilhe com ela e com quem mais quiser (FB etc), será uma honra. Quanto mais debate melhor.
      Abraços!

      Curtir

  4. Sonia Mosinskis
    25 de novembro de 2013

    Não poderia ser mais verdadeiro o que você escreveu, André , e nem dito com mais elegância. Quanto a essa necessidade de mitologia e contos da carochinha para o ser humano ser “humano”, este é o grande mistério. S.Mosinskis

    Curtir

    • O Meio e o Si
      25 de novembro de 2013

      Obrigado, Sônia.
      Nem tão mistério se você pensar que é um caminho mais fácil. Imagina que beleza acreditar que todas as respostas que você precisa estão num livro só! 😉
      Abraços.

      Curtir

    • Gilton Sousa
      8 de agosto de 2016

      Essa mitologia não foi imaginada para justificar nossa “humanidade”. Religiões foram criadas, primitivamente, para aplacar/bajular divindades pretensamente responsáveis por fenômenos naturais benfazejos ou catastróficos; em nossos dias, entre outras finalidades, funciona como um conjunto de crenças consoladoras, que amainam o natural terror ao nada desse animal ciente de sua finitude que é o ser humano.

      Curtir

  5. Marilia
    25 de novembro de 2013

    Ótimo texto! Há tanta paixão e controvérsia onde faltam evidências! Se existe um propósito no universo, na vida, não nos foi dado saber, e havendo, não está em nosso nível de percepção, de concepção.

    Curtir

Deixe um comentário

Informação

Publicado às 25 de novembro de 2013 por em FILOSOFIA & INDIVÍDUO, SOCIEDADE & POLÍTICA e marcado , , , , .

Digite seu endereço de email para acompanhar este blog e receber notificações de novos posts por email.

Junte-se a 211 outros assinantes

Siga no Twitter