O Meio e o Si

Seu blog de variedades, do trivial ao existencial.

O botão que apertaríamos

hiroshima nagasaki bomb

Há setenta anos foi tomada a decisão de se jogar duas bombas atômicas no Japão, em Hiroshima e Nagasaki, para “terminar a Segunda Guerra Mundial”. Não entrarei no mérito estratégico-político da ação, discutindo se foi justificável ou não. Esse tipo de especulação me interessa menos do que uma questão mais profunda, de implicações sérias e até catastróficas: o ser humano não tem a capacidade de internalizar as consequências de atos realizados à distância.

Decisões tomadas longe dos acontecimentos, sem que se veja, sinta, cheire, ouça os resultados, rompem perigosamente o já-frágil elo da compaixão. Perde-se o vínculo entre ação e efeito. Nossa capacidade de sentir empatia diminui exponencialmente com a distância.

O interessante Dilema do Bonde, elaborado na década de 70 pela filósofa britânica Phillipa Foot, explora bem essa questão ético-evolucionista. Um bonde está fora de controle. Em seu caminho, cinco pessoas encontram-se amarradas no trilho. Felizmente, é possível acionar uma manivela que encaminhará o bonde para outro trilho, mas ali, se encontra outra pessoa também atada. Deveríamos acionar a manivela? Aqui, mais de 90% das pessoas dizem que sim, que seria ético, ou desejável, sacrificar uma vida para salvar cinco.

Vamos adicionar uma variante agora. Como anteriormente, um bonde desgovernado vai em direção a cinco pessoas amarradas no trilho. Desta vez, no entanto, não existe a opção da manivela. Por outro lado, um sujeito obeso está em uma passarela sobre o trilho e você está ao seu lado. A única maneira de evitar o choque é empurrando o homem obeso da passarela para o trilho, fazendo o bonde parar. Aqui, o resultado é totalmente oposto: mais de 90% das pessoas afirmam que não empurrariam o sujeito.

Conforme nos distanciamos das consequências de nossos atos, menos nos sentimos responsáveis por eles. Nesse caso, por exemplo, apesar de a maioria das pessoas racionalmente concordar que seria ético ou correto sacrificar uma vida para salvar cinco, elas só o fariam no primeiro cenário, através do objeto “distanciador” que é a manivela. A ideia de empurrar com as próprias mãos uma pessoa para sua morte, sentindo a resistência de seu corpo, vendo o terror nos seus olhos, escutando seus suplícios, afasta a maioria das pessoas da situação, independente do que ocorra com as outras cinco (que nesse contexto tornaram-se mais distantes).

Nossa espécie evoluiu como animal social, interagindo em pequenos grupos, com relações imediatas. Assim sobrevivemos, ao longo de dezenas de milhares de anos, uns cooperando com os outros em questões internas e lidando com ameaças externas também em pequenos grupos e tribos. Matávamos a mão, ou com lanças e arco-e-flechas, de um em um. Para cada ação, uma reação proporcional. O preço de matar era ter que lidar com a imagem de sua vítima em seus sonhos, em sua realidade.

Não foi até muito recentemente em nossa história que começamos a interagir em grupos maiores, dentro de um sistema global, divido por nações e ideologias. Ademais, as novas tecnologias bélicas elevaram nossa capacidade de matar de forma descontrolada. Conforme o ex-secretário de defesa americano Robert McNamara confessou no documentário Sob a Névoa da Guerra, no mundo moderno decisões que podem matar milhares de pessoas são tomadas de forma fria e distanciada, sem que ninguém perca o sono por isso. Nessa nova “dinâmica de coletivos” – aliados contra eixo, comunistas contra capitalistas, americanos contra soviéticos, ricos contra pobres – perde-se a individualidade, a compaixão, a humanidade.

O piloto do avião que jogou as bombas no Japão confessou depois que, apesar de saber na teoria o que estava fazendo, não tinha ideia da real grandeza do horror do seu ato. De certa forma, apenas apertou o botão que acabou com a guerra. Foi tratado como herói o resto da vida, apesar de ter participado de um dos maiores assassinatos em massa de civis inocentes da história moderna. Paradoxalmente, se fosse descoberto que durante a guerra ele violentou e matou uma japonesa, seguramente sua reputação iria por água abaixo e seu ato seria repudiado. Conforme bem disse Stalin, “uma morte é uma tragédia, milhões de mortes é uma estatística”.

As armas modernas, como os drones, contribuem ainda mais para esse perigoso distanciamento. Nosso futuro depende diretamente da capacidade de desenvolvermos alguma espécie de “compaixão coletiva”, que faça frente aos novos desafios. Precisamos de mais movimentos de base e líderes que nos guiem nesse sentido.

Veja também O vicio da guerra e quem somos. Fotografia: dailymotion.com.

7 comentários em “O botão que apertaríamos

  1. Eugenio Arima
    19 de fevereiro de 2016

    Prezado autor,

    Gostaria que perdoasse minha impertinencia quanto ao dilema do bonde, que me parece um falso dilema.

    Assim me parece porque desviar o bonde de rota é diferente de, deliberadamente, empurrar alguem sobre os trilhos, ainda que o resultado seja praticamente o mesmo.

    Senão, vejamos. O indivíduo está dirigindo e ve um pedestre atrevessando vagarosamente a via. O motorista tem pressa e não reduz a velocidade do veículo. Repentinamente o pedestre para, distraído por uma chamada e o motorista o atropela violentamente, matando o pedestre.

    Como analisaria tal caso, a luz do dilema do bonde?

    A despeito da questão do bonde, empregada como suporta a ideia principal de que a instrumentalização substitui a relação pessoal, concordo com a exposição.

    Penso que poderia estender ao mercado que demite os funcionários de uma planta, apenas porque não está lucrando o que esperam os acionistas. Os motoristas que não se importam com pedestres. Os políticos que não enxergam sua obrigação para com o público.

    Será que ao institucionalizarmos as relações, abrimos espaço para o mecanicismo ?

    Será que o anonimato gerado pelos sistemas e máquinas, liberam o que temos de pior? Lembro que a constituição permite a denúncia, vedado o anonimato.

    Será que jamais atingiremos o ápice da moral Kantiana, aquela que afirma que o homem moral assim o é, ainda que longe das vistas dos seus semelhantes?

    Devemos concordar com a máxima judaica de que o homem é mau por natureza, ou deveremos candidamente concordar com Voltaire que o homem é bom, e é nossa cultura que os deturpa?

    São questões que nos levam para além do covarde que aperta o botão, o tipo de covardia do carrasco que se oculta para não demonstrar o seu prazer em exercer o mister.

    Curtir

    • omeioeosi
      24 de fevereiro de 2016

      Obrigado pelo comentário. O Dilema do Bonde se refere ao distanciamento de nossas ações e suas consequencias. Não entendemos bem a relação do dilema com os conceitos que você levantou. Quanto ao homem ser mau por natureza, trata-se de uma máxima judaico-cristã, mas hoje muito mais forte no segundo grupo, entranhado nas noções de “culpa” e “pecado”. O judaismo nesse sentido parece ter evoluído, já desde as interpretações tamúldicas. Abs.

      Curtir

  2. Selma Esteves
    11 de setembro de 2015

    Muito reflexivo, o texto construído de maneira metafórica, além de facilitar a compreensão dá toda uma sofisticação literária, numa musicalidade poética tão bem elaborada, capaz de seduzir e informar o leitor. É um verdadeiro convite à leitura, para qualquer leitor que se preza, de maneira que eu me sinto privilegiada por ser leitora de um escritor tão sofisticado, conhecedor da história e tão bem informado por isso mesmo capaz de entrelaçar um elo entre passado e presente como meio de chamar à reflexão trazendo para perto o que se vê ao longe nos fazendo repensar a ética na trajetória humana enquanto evolução.

    Parabéns Andrea A.

    Curtir

    • omeioeosi
      11 de setembro de 2015

      Cara Selma, muito obrigado pelo comentário. Não sei realmente se mereço tamanho elogio… Lhe convido a seguir o blog (increva seu email para receber os posts – lado direito dos posts), assim como ler outros posts. E claro, nos ajude a divulgar compartilhando! 🙂 Um abraço e volte sempre! AA

      Curtir

  3. Pingback: Sorria, o mundo é belo | O Meio e o Si

  4. Natalia Cunha
    7 de agosto de 2015

    Adorei André! A compaixão pelo outro que não tem nenhum laço conosco está cada vez mais rara. Sempre foi rara! O homem sempre foi egoísta por natureza. Mas em um mundo interligado e com “distâncias” cada vez menores, estamos nos tornando mais frios e distantes das individualidades alheias.

    Curtir

    • omeioeosi
      7 de agosto de 2015

      Obrigado, Natália. É verdade. Mas quanto a natureza humana, não somos necessariamente egoístas. Talvez em última estância sim, para conseguirmos nossos objetivos, mas ao mesmo tempo desenvolvemos habilidades de cooperação e compaixão. Veja a parte sobre “Valores seculares” nesse post: https://omeioeosi.com/2014/08/13/religiao-etica-e-moral/

      Curtir

Deixe um comentário

Digite seu endereço de email para acompanhar este blog e receber notificações de novos posts por email.

Junte-se a 211 outros assinantes

Siga no Twitter