Nunca havia sido tão difícil conseguir comida. Apesar do espírito natalino, o tempo chuvoso dos últimos dias fazia com que os transeuntes passassem apressados e cabisbaixos, dando menos atenção ainda aos seus apelos de pedinte. Se fosse só por ele, aguentava. Mas seu filho de quatro anos acabara de olhar nos seus olhos e gritar chorando: “Papai, tô com fome!”. Isso, não. Quando resolveu sair da pequena Algar para tentar a vida na capital, se prometera que a esse ponto nunca chegaria.
“Um dinheiro, moça, pelo amor de Deus… Meu filho tá com fome”. A resposta era sempre uma sacudida de cabeça, às vezes acompanhada de olhar de medo, às vezes desprezo, às vezes pena. Os estabelecimentos que normalmente o ajudavam já haviam fechado: a lanchonete, a padaria, o restaurante português. Dormir costumava ajudar a amenizar a fome; mas fome em demasia não deixa dormir. Seu filho reclamou novamente. Dessa vez, no entanto, o apelo ressoou com uma dor física em seu peito, uma pressão aguda que o fez, pela primeira vez, desabar em prantos diante do menino. Havia se prometido nunca chorar na sua frente. Assim como não passar mais do que a primeira noite na rua – já estavam há quase um mês naquela situação. Era homem bom e de fé, mas os códigos de conduta traçados de início caíam um atrás do outro.
Havia pouquíssimas pessoas na rua àquela altura da noite. Estava sentado no chão com o filho no colo, tentando acalmá-lo com uma canção de ninar, quando viu do outro lado da rua uma mulher caminhando apressada. Pediu que o filho o esperasse sentado onde estava e andou na sua direção. A mulher o viu atravessando a rua e apertou o passo, visivelmente tensa, apertando a bolsa junto ao corpo com o braço direito. Aproximou-se dela, molhado pela chuva fina:
– Doutora, meu filho tá com fome, a senhora me dá um trocado?
– Não tenho, não… Se chegar mais perto eu grito!
– Mas doutora, eu…
A mulher abriu a boca para gritar mas foi interrompida por um soco seco que lhe quebrou o nariz e a fez cair, desmaiada, no chão. Olhou para trás e viu o filho ainda sentado ao meio-fio, tampando o rosto com as duas mãos. Virou-se novamente para a mulher caída e por alguns segundos ficou a olhar, pasmo, seu nariz e boca ensanguentados e olhos semiabertos. Finalmente abriu a bolsa, esvaziou a carteira de boa quantidade de dinheiro, colocou-a de volta. Voltou ofegante na direção do filho.
– Papai, por que a moça tá no chão?
– A moça caiu, filho. Vamos comer um queijo-quente e um panetone na lanchonete da rodoviária.
Comeram sem trocar uma palavra, apenas sorrisos de olhares. Às 23 horas sairia o ônibus para Algar.
Veja também o conto Árvore dá vida. Imagem: fonte desconhecida; editada pelo autor.
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